Desde há muitos anos dedicado ao estudo da História de Vila Nova de Milfontes, Dr. António Martins Quaresma, volta a apresentar neste espaço, mais um valioso apontamento que nos ajuda a compreender o passado desta Vila.
Desta feita, as raízes do famoso "Castelo de Milfontes" (que afinal é um forte) são aqui detalhadamente explicadas. No texto que se segue, o visitante pode melhor compreender a razão da sua existência e conhecer a sua história, desde a construção até aos nossos dias.
O Castelo
A edificação do forte ocorreu entre os anos de 1599 e 1602, na sequência de um período de forte assédio corsário à vila. Designado em geral, algo impropriamente, por “castelo” (termo ajustado a construções defensivas medievais), foi-lhe dado, de início, o nome de S. Clemente, santo associado a consagrações marinhas. O símbolo de S. Clemente, uma âncora, parece ligar ao forte a ideia de um porto mais seguro. Com razão.
Não há dúvida de que a sua construção se destinou a melhorar a segurança da desprotegida costa alentejana, constantemente percorrida por corsários e piratas, e, ao mesmo tempo, a defender o porto e a sacrificada vila de Milfontes. Aliás, a primeira fase do período filipino foi fértil em realizações arquitectónicas, nomeadamente no plano militar, que incluíram uma maior e mais moderna cobertura fortificada do litoral, para o que contribuiu a vinda a Portugal de engenheiros italianos.
Projecto do citado engenheiro napolitano ao serviço da Coroa, Alexandre Massaii, que aqui esteve em 1598 a efectuar os estudos prévios, a edificação iniciou-se no ano seguinte, com o estaleiro transferido do Pessegueiro, cujas obras portuárias e defensivas foram interrompidas. A direcção dos trabalhos foi entregue ao próprio Massaii, ficando concluídos em finais de 1602. Boa parte da pedra para a construção terá sido, como no Pessegueiro, obtida da rocha arenítica próxima, onde ainda, em baixa-mar, se divisam claramente sinais de cortes.
Construído sobre esporão rochoso, na margem direita do rio, a cerca de 1.5 Km da embocadura, para onde apontava as suas baterias, o forte buscou as máximas possibilidades defensivas naturais. Maneirista na sua traça, obedecia à tipologia característica de uma fortificação moderna preparada para receber e defender-se de artilharia, dentro dos novos princípios da pirobalística. De planta grosseiramente quadrangular (ou poligonal, para sermos mais precisos), parecia avançar em cunha sobre o estuário, oferecendo ao fogo de possíveis inimigos uma superfície angular destinada a amortecer os impactos dos projécteis. Nas primeiras plantas do forte esse ângulo surge ainda arredondado, mas após importantes obras efectuadas por volta de 1693, já no período barroco, ficou em aresta viva. Apresentava, para bater a entrada do estuário, duas plataformas desniveladas, com outras tantas baterias, a barbete, isto é, a disparar sobre o parapeito. Fronteiro à vila, do lado norte e nascente, um terrapleno lajeado guarnecido com canhoneiras. Embora não se possa dizer que se trata de simples bateria ou plataforma artilhada, as dimensões são as de um pequeno forte, cujos lados rondam os 35 metros, mais ou menos.
Virada a nascente, abre-se a porta em arco redondo, encimada por pedra de armas com escudo e coroa fechada (conforme o uso da época) e simplificada. Para defesa da porta, além da cava ou fosso, um simples ressalto na muralha, formando um ângulo flanqueante, sem os característicos baluartes que vemos, por exemplo, no Pessegueiro. O acesso fazia-se por ponte levadiça, cujo mecanismo deixou de funcionar talvez desde meados do século XVIII, ou mesmo antes. À entrada, no interior, uma espécie de corredor com os costumados obstáculos: corpo da guarda, “rastilho”, isto é, uma grade que interrompia a passagem ao interior.
Ocupando o espaço delimitado por parte dos ramais leste e sul, dois pisos comportavam o antigo alojamento do governador, no superior, coberto inicialmente por um terraço para mosqueteiros, dado o papel que a armas de fogo individuais já então desempenhavam (mais tarde, substituído por telhado), e quartéis e armazéns, no inferior. As restantes dependências, em que se incluía a capela, situavam-se na “praça baixa”, encostadas ao terrapleno.
Cercava o forte, por norte e nascente, uma cava ou fosso, limitado exteriormente por contra-escarpa, na qual corria uma estrada coberta, acessível a partir do fosso por desaparecida escada de pedra. O muro que hoje rodeia o fosso do castelo e que forma os miradouros da Barbacã (também uma designação arcaica) é o que resta dessa antiga fortificação exterior. À solução dos baluartes foi aqui preferida uma defesa baseada na alta e forte muralha e nas obras exteriores, até porque, essa zona ficava circunvizinha ao casario da vila.
A história do forte, é marcada por notícias que dão conta das dificuldades em manter, ao longo dos tempos, um mínimo de operacionalidade militar, já por carência de pessoal, já por deficiente municiamento. Apesar de tudo, quanto mais não seja pelo efeito dissuasor, não devemos menosprezar o seu papel defensivo.
Uma nova história do forte iniciou-se no alvor do século XX. Terminada a sua função militar, foi, em 1903, arrematado em hasta pública pelo capitão de infantaria Valério Manco Ferrão, residente em Lisboa, por 464 mil réis, passando assim para mãos particulares. Este, por sua vez, acabou por vendê-lo, em 1909, a Francisco de Jesus Gonçalves, então morador na herdade de Gomes Anes (Odemira), pelo preço de 250 mil réis. A acreditar nos valores declarados nas escrituras, o capitão Ferrão fez fraco negócio.
O forte apresentava, nessa altura, aspecto decadente, principalmente nos muros voltados para a barra, no casario adossado ao cavaleiro, nos parapeitos e na contra-escarpa, embora os poderosos muros da praça alta lhe conferissem ainda sólida aparência. Situação justificada pela acção do tempo, conjugada com o desprezo a que fora votado. O facto de ter sido privatizado não lhe trouxe imediatamente qualquer vantagem em termos de conservação; antes pelo contrário, os sucessivos proprietários não lhe prestaram qualquer atenção durante quase 40 anos.
Finalmente, por compra efectuada em 1939 (escritura lavrada em 1940), o castelo foi providencialmente adquirido, por Luís Manuel de Castro e Almeida, através de sua mulher Margarida Marques de Figueiredo. O novo proprietário, um viajado proprietário e negociante, natural de Lisboa, que usava o título de “Dom”, mandou então restaurá-lo para sua residência e para fins turísticos (“turismo de habitação” avant la lettre), funções que ainda mantém.
Hoje, mostra naturalmente alterações relativamente ao tempo em que tinha função bélica, as mais visíveis efectuadas depois de 1939, durante as obras de restauração. No exterior, destaca-se o friso de janelas em arco que remata o muro da praça baixa e marca a silhueta do forte visto de sul ou de poente, traçadas para melhorar a habitabilidade do forte. Um pastiche de cubelo medieval avulta na praça alta, do lado norte; disfarça um depósito de água e foi construído há alguns anos, em período de deficiência do fornecimento de água ao domicílio. Interiormente, a área habitável foi sendo ampliada pela escavação do terra-pleno e ligação ao fosso por pequena porta, bem como pela ampliação do “casario” na praça alta.
O “forte de Milfontes” recebeu classificação de “imóvel de interesse público” pelo decreto 95/78, de 12 de Setembro, e, com a criação do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, foi incluído numa das áreas de salvaguarda do património cultural (decreto 33/95), o que não se tem mostrado suficiente para uma efectiva protecção.